O amor levou Ilídio Flores a uma depressao polar
As insónias de Ilidio Flores provocavam depressões recorrentes.
Quando teve o primeiro ataque de pânico, pensou que estava a morrer.
Texto:
O primeiro inverno em Suolahti está claramente gravado na memória
de Flores. A queda de neve que se seguiu à mudança em outubro
parecia divertida e as noites cada vez mais escuras e encantadoras.
No outono seguinte, porém, o caos apoderou-se dele como um pântano
profundo.
- Estava sempre melancólico e deprimido. A diversão desaparecia
por todo o lado. À medida que a escuridão aumentava, comecei a
manter-me acordado, o que acabou por durar quatro semanas antes do colapso.
Estávamos no início dos anos 90 e as insónias ainda não
tinham acabado. A depressão e a perturbação de pânico
também fazem parte da vida de Ilídio Flores desde então.
- Cheguei ao fundo do poço várias vezes, mas saí das dificuldades
mais forte do que nunca. As doenças mentais são como qualquer
outra doença. Tem de ser tratada. Só gostava que houvesse uma
discussão mais aberta", diz Flores, 35 anos depois.
Quando teve o primeiro ataque de pânico, Flores pensou que estava
a morrer por falta de oxigénio. Foi levado de sua casa de ambulância.
Antes do ataque, Flores diz que ficou novamente acordado durante semanas. Passava
as noites na Internet, em salas de conversação portuguesas, a
ver as notícias e o futebol.
O pânico ainda se instala com a vigilância.
- Os ataques de pânico são realmente horríveis. É
disso que eu tenho medo", diz Flores.
Flores passou a maior parte da sua longa licença por doença
em Portugal, com os pais, na sua aldeia natal. Flores, que se identifica como
filho da sua mãe, diz que passou a sua infância numa equipa de
futebol com nove irmãos.
- Toda a comunidade esteve envolvida no processo de cura, sublinha Flores.
Mas a dor não desapareceu. Flores sentia a falta das filhas, que ficaram
na Finlândia e mantinham contacto diário com ele. Quando Flores
regressou a Äänekoski, apercebeu-se de uma enorme diferença
na forma como as pessoas com depressão são tratadas nas diferentes
culturas.
- Há uma atitude de "vamos ficar doentes em paz". Mas não
é assim que as coisas funcionam. Sentir-se sozinho e isolado é
a pior coisa que uma pessoa deprimida pode sentir, observa Flores.
- Com ele vêm os sentimentos de culpa, vergonha e inadequação.
Flores recorda o seu primeiro período de depressão com
uma reação imediata. O mundo à sua volta era confuso e
a recuperação não era uma ideia realista.
- Não havia prazer em nada. Um colapso total levou-o a ser hospitalizado,
recorda Flores.
Flores nem sequer conseguia desfrutar da companhia das pessoas, apesar da sua
natureza muito sociável e extrovertida.
- Era difícil estar com as pessoas, mas eu tentava estar.
Para jogar futebol, Flores tinha de ser apanhado em casa de carro, quase à
força. Mas ele está grato por isso ter acontecido.
- Lembro-me da primeira vez que entrei em campo, fiquei ali parado. Mas passadas
algumas semanas, acho que já me estava a mexer um pouco. E passados alguns
meses, já estava a jogar", diz Flores com um brilho nos olhos.
Flores tem sido presença assídua nos campos de futebol de Suolahti
e Äänekoski e tem treinado os juniores desde a sua chegada à
Finlândia.
Quando regressou ao trabalho, Flores sentiu como se toda a sua vida
profissional tivesse mudado durante mais de um ano e meio de baixa por doença.
Ele gostaria de destacar Harri Lehdo, um professor de Suolahti, que acreditou
na recuperação de Flores mesmo quando ele já não
acreditava.
- Para mim, o trabalho é como uma terapia. Traz-me um ritmo diário
regular, a hora de dormir e de acordar", sublinha Flores.
Flores, que trabalha como conselheiro escolar, diz que a sua doença ainda
o leva a ficar de baixa de vez em quando, embora o trabalho o faça sentir-se
em casa.
De qualquer forma, ele fala muito sobre o bem-estar dos jovens.
- Sempre estive do lado dos mais fracos. Há muitas crianças e
jovens marginalizados com problemas de saúde mental cujos gritos de ajuda
precisam ser ouvidos. Se não o fizermos agora, em breve poderá
ser demasiado tarde. Entristece-me o facto de o governo estar a fazer cortes
nos jovens que já estão doentes.
Flores enumera uma longa lista de diferentes medicamentos que foram
utilizados para o tratamento. Os meses podiam prolongar-se por anos até
que começassem a aparecer os medicamentos certos que funcionavam para
Flores.
No início dos seus tratamentos, Flores admite ter sido anti-medicamentoso.
- Aos poucos, comecei a perceber que ninguém me podia salvar a não
ser eu próprio. Temos de cuidar de nós próprios para o
bem dos nossos filhos", diz o pai de dois filhos e avô de três.
Hoje em dia, Flores consegue muitas vezes reconhecer os sintomas de um ataque
de pânico.
- Se tomar o medicamento atempadamente, o ataque não acontece.
Décadas de treino atrás de si. Cinco vezes por semana
de exercício físico, uma rotina diária regular e uma alimentação
saudável, Flores enumera as suas regras para lidar com a sua doença.
- Para além da música e da poesia, Flores, que já escreveu
dois livros de poesia, acrescenta.
Flores publicou dois livros de poesia, um em finlandês e outro em português.
Para além da cultura, sente-se motivado pelo trabalho de voluntariado,
que desenvolve há muito tempo com os idosos.
- Ajudar os outros é um dever de todos os que são capazes de o
fazer", salienta Ilídio Flores.
Ilidio Flores também vota no conselho municipal de Äänekoski
como membro da esquerda.
Flores continua a ter contacto regular com um prestador de cuidados
que pode ser chamado em caso de necessidade. O estado de equilíbrio mental
é sensível às mudanças e, como alma fogosa, Flores
diz que reage fortemente a quase tudo.
Houve choques, o primeiro dos quais foi a separação da mãe
das crianças.
- Foi um colapso total. Foi o amor que me trouxe até aqui, aos 23 anos.
Desde o divórcio, o mais difícil foi enfrentar a morte dos próprios
pais.
- Primeiro morreu a minha mãe e três meses depois o meu pai. Deve
ter sido um luto, diz Flores, e ele ficou comovido durante muito tempo.
Pouco depois dos pais, morreram dois irmãos, ambos de cancro no estômago.
Numa tarde de primavera, em março, o apartamento de Flores já
fervilha de ritmos latinos e o ar está impregnado de vapor picante. Batatas,
cenouras e frango cozidos numa panela portuguesa.
- Mas esqueci-me das ervilhas", diz Flores, mudando de assunto.
O ritmo dos passos volta a ser feroz e a fala é mais aguda do que o movimento.
Flores serve o café e o chá. O pastel de nata português,
um pastel de baunilha, ele faz questão de o fazer derreter na boca.
- Dormi durante seis horas. Aos bocados, mas dormi. Há sempre esperança.
A depressão pode ser recuperada se for tratada atempadamente", recorda
Flores